Na mais recente aposta da editora Ala dos Livros, os leitores portugueses têm a oportunidade de percorrer a vida de Charles Baudelaire numa obra com argumento e ilustrações de Yslaire.
Senhora Aupick,
A vós, que me perguntais quem sou, posso dizê-lo.
Mas, correndo o risco de parecer orgulhosa, nenhum leitor de ‘As Flores do Mal´ esquecerá a Vénus negra de Charles Baudelaire, a musa imoral, amaldiçoada, do maior dos poetas malditos.
Sim, sou eu, a bela tenebrosa, a cara indolente, que caminha a compasso, bela de requebros, como uma serpente que dança...
É assim que os leitores voltam à infância do escritor e percorrem vários episódios de uma vida conturbada, enquanto desvendam a complexa relação apaixonada entre Charles e Jeanne. Um dos primeiros momentos que marcam a vida de Charles é a morte do seu pai e como isso se reflete na relação com a sua mãe. Esta acaba por encontrar um companheiro, o general Aupick, com quem o escritor terá vários choques ideológicos. Charles embarca assim numa vida de boémia e luxúria com os seus colegas Théophile Gautier, Félix Nadar e Gerárd de Nerval. Charles assume a postura de um verdadeiro dandy parisiense, que o levará, mais tarde, a ter problemas financeiros e algumas recaídas ao longo da sua vida.
Durante uma ida ao teatro, Charles conhece a sua musa. Após visitar a mesma no backstage começa a complexa relação entre ambos. O argumentista consegue traçar todos os problemas e inseguranças que o escritor possui e como este recorre à sua vénus nos momentos em que mais necessita. A relação entre os dois é bastante física e o autor recorre à arte para o demonstrar. É igualmente interessante a forma como o artista consegue retratar a opressão e racismo que Jeanne sofre ao longo da sua vida, através dos comentários da mãe de Charles em relação à sua companheira mas também alguns comentários referidos pelos seus colegas. O artista consegue retratar o pensamento retrógrado de um século misógino, preconceituoso e racista.
Algo que marca a vida do escritor é a sua luta com a sífilis e as consequências da medicação utilizada para combater a mesma na sua saúde, bem como o recurso ao ópio como impulsionador da criatividade. Estes problemas acabam por se refletir na relação entre o autor e a sua musa que se vai desgastando a cada recaída e discussão. É apresentada igualmente a influência e adoração do autor pelo seu irmão (como ele refere) Edgar Allan Poe. Apesar de não conhecer a fundo a obra destes dois autores, através das citações extraídas da obra "As Flores do Mal" que foram incluídas na narração de Jeanne é possível verificar as ideias que unem estes dois. Visualmente, o artista ilustra várias vezes a figura de um corvo numa clara referência ao autor da obra de mesmo nome.
Apesar de achar o argumento muito bem construído e com um ritmo adequado à história contada, o ponto alto do livro é a sua arte. Yslaire apresenta um traço realista e afinado que representa bem o contexto em que a história se passa e que em vários momentos pode chocar os leitores dado o deslocamento temporal mas principalmente o deslocamento ideológico. As ilustrações alucinatórias, normalmente ilustradas com recurso a splash e double splash pages são os momentos altos de um trabalho gráfico absolutamente arrebatador. É sem dúvida de realçar que as liberdades poéticas e simbolismos que Yslaire incluiu na sua ilustração traçam um paralelo com o próprio simbolismo presente na poesia de Baudelaire.
Para aqueles que acompanham o trabalho editorial da Ala dos Livros certamente não se irão impressionar com a qualidade gráfica e com o acabamento deste livro, uma vez que é apanágio da editora. O papel é brilhante e com alta gramagem, o acabamento é em capa dura com um efeito brilhante e no final do livro são incluídos alguns extras relativos à biografia de Charles. Sem dúvida que o acabamento deste livro acompanha a qualidade da obra. Poderão ver mais imagens deste álbum aqui: https://www.instagram.com/p/CpAuEbDMCA9/
A proposta certamente não era fácil mas Yslaire consegue traçar uma dupla biografia, a de Charles Bauderaile e da sua Vénus Negra, com uma história bem contada, retratando a relação entre os dois e elevada por um dos melhores trabalhos gráficos publicados em Portugal.
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