Esta
sem dúvida foi uma das minhas leituras preferidas de todos os tempos e uma das que mais apreciei. Akira de
Katsuhiro Otomo tem uma reputação inegável entre os leitores de banda
desenhada. Durante muitos anos tive alguns volumes, no entanto, apenas
no mês passado é que consegui completar a edição nacional editada pela
Meribérica/Liber. Vamos ver o que achei da obra!
Começando pela edição nacional, esta segue a edição
publicada originalmente pela Epic Comics, associada à Marvel Comics nos
Estados Unidos. Deste modo, além de ter leitura ocidental (da esquerda
para a direita), fruto do "espelhamento" das vinhetas, esta edição é
igualmente colorida. As cores são da autoria de Steve Oliff que até
recebeu um prémio Eisner em 1992 pelo seu trabalho de colorização. Em
2019, a JBC Portugal tentou publicar a obra seguindo a versão original,
no entanto apenas publicou o primeiro de seis volumes. Particularmente
gostaria de ter lido a versão original e espero que, no futuro, alguma
editora portuguesa o faça, não obstante gostei bastante da versão
ocidentalizada dado esse trabalho fantástico de Steve Oliff. Além de
tornar mais acessível a obra a leitores ocidentais, a colorização
aproxima o trabalho do manga à adaptação cinematográfica lançada em 1988
e que foi realizada pelo autor do manga. De facto, o meu primeiro
contacto com a obra foi através desse filme absolutamente influente e um
marco no cinema de animação, o que me permitiu ter uma noção da
história contada por Otomo. No entanto, dado a extensão da obra
original, a versão cinematográfica trata-se de uma versão condensada da
história do manga e que apresenta até algumas diferenças. Além disso, a
publicação original da obra ocorreu entre 20 de dezembro de 1982 e 25 de
junho de 1990 nas páginas da revista Young Magazine e o filme foi lançado em 1988. Mas dada toda esta apresentação, de que se trata afinal a história de Akira?
A
trama passa-se em Neo Tókio, no ano de 2019, 38 anos após uma explosão
atómica ocorrida na cidade e que levou à 3ª Guerra Mundial.
Assim, Neo Tókio apresenta-se como uma cidade pós-apocalíptica muito
inspirada na cultura cyberpunk e que está repleta de gangues de
motos que entram em lutas entre si. Um desses gangues é liderado por
Shotaro Kaneda, uma das várias personagens que assume o protagonismo ao
longo da história.
Numa noite, o gangue de Kaneda sofre um
acidente e Tetso, o melhor amigo de Kaneda, atropela uma criança com
pele azul clara e aspeto de idoso. Após este evento, Tetso começa a ter
reações estranhas e que irão desencadear um enorme poder que o mesmo
desconhecia ter dentro de si. Estas reações acabam por atrair a atenção
de agentes do governo que realizam experiências com crianças. Tetso
acaba por ser capturado e torna-se cobaia dos cientistas do governo que
estudam os poderes de Tetso. É neste contexto que Kaneda se envolve numa
mega série de eventos para salvar o seu amigo, sem saber da existência
de Akira, uma entidade poderosa que está prestes a despertar.
Dada
uma breve apresentação do enredo, o primeiro ponto que quero referir é
que esta história é bastante complexa, tanto pelas tramas e sub-tramas
que apresenta para um vasto elenco de personagens, bem como para os
diversos temas que Katsuhiro Otomo aborda ao longo do desenrolar da
mesma. Akira aborda no seu argumento temas como poder, corrupção,
política e o envolvimento de outros países na política externa, amizade,
reflexões sociais, utilização de drogas, entre outros. Assim, o grande
feito de Otomo na construção do argumento é abordar todos estes temas de
forma cativante e mantendo o leitor sempre na ânsia de saber qual o
desfecho da trama e dos respetivos personagens. E é maioritariamente
através dos seus personagens que o argumentista consegue comentar sobre
os diversos temas que referi.
Falando um pouco dos personagens, diria que Akira não apresenta um verdadeiro protagonista. Mesmo assim diria que os personagens mais relevantes são Tetso, Kaneda e Kei. Apesar disso, a história apresenta vários núcleos de personagens e, mesmo aqueles que apresentam um papel mais secundário quando comparado a estes três personagens, acabam por ter um papel fundamental no enredo. Isto permite que Otomo consiga variadas vezes mudar o foco da ação, construindo as bases necessárias para o desenvolvimento da história, sem que o leitor nunca perca o interesse durante a leitura.
Dado este vasto elenco de personagens, um dos pontos mais interessantes de Akira é a forma como Otomo trabalha os seus personagens, dando-lhes arcos narrativos interessantes e complexos. Além disso, as ações tomadas pelos personagens, bem como as consequências das mesmas ajudam a moldar o caráter das personagens. Destaque para o personagem Tetso que, por razões óbvias, é aquele que apresenta uma maior evolução ao longo de toda a história.
Relativamente às ilustrações, estas são absolutamente magistrais. Em primeiro lugar, dada a extensão da obra é fantástica a consistência apresentada ao longo dos 38 capítulos. Dada a inclusão de imensas cenas de ação, este talvez seja o destaque mais óbvio da ilustração deste manga. Os diferentes ângulos apresentados pelo artista, assim como a capacidade de dar dinamismo à ação, são alguns dos pontos mais fortes da ilustração. No entanto, o detalhe apresentado nos cenários e a utilização de sombra e luz são igualmente utilizados de forma exímia. Por fim, o ponto que acho mais importante na ilustração de Otomo são as expressões faciais e a linguagem corporal que este ilustra. Abordando o caso específico de Tetso, sem utilizar uma única palavra e recorrendo apenas às expressões faciais de dor, ao suor e lágrimas e à postura contorcida do seu corpo, o artista consegue transmitir ao leitor da forma mais eficaz possível os momentos agoniante que o personagem está a passar. Absolutamente soberbo!
Para finalizar tenho de fazer referência ao filme de animação realizado pelo autor da obra e lançado em 1988. É indubitavelmente um marco no cinema de animação por todas as técnicas revolucionárias que foram utilizadas e pelo recurso a 24 frames por segundo que tornam a animação extremamente dinâmica. Dadas as limitações de tempo para desenvolver o argumento, a história apresentada é uma versão condensada do manga, com algumas diferenças, mas que consegue captar a essência do mesmo. Acho que é uma experiência complementar e um filme obrigatório para qualquer cinéfilo.
Passados tantos anos Akira continua a ser uma das obras mais importantes e relevantes de todos os tempo e que sem dúvida tem resistido muito bem ao teste do tempo. Katsuhiro Otomo mostra nesta obra toda a sua qualidade como autor completo, tanto no argumento como na arte. É sem dúvida uma daquelas obras que "toda a gente tem de ler pelo menos uma vez na vida" e que devem estar sempre em catálogo para os leitores. Deste modo, o meu desejo é que alguma editora recupere a série e finalize o trabalho iniciado pela JBC Portugal.