sexta-feira, 16 de junho de 2023

A série “O Corvo” de Luís Louro

Com o relançamento do terceiro volume O Corvo III - Laços de Família (2007) pela editora Ala dos Livros, decidi escrever um artigo que aborda a série O Corvo da autoria de Luís Louro.

Luís Louro é um ilustrador, desenhador e autor da banda desenhada, nascido em junho de 1965 em Lisboa. Com uma extensa carreira na banda desenhada portuguesa que conta com parcerias com Tozé Simões, com quem lançou a série Jim Del Mónaco e a compilação de histórias Universo Negro, Rui Zink e até Nuno Markl.



Apesar de todas essas parcerias, a partir do ano de 1994 Louro dedicou-se aos argumentos e assinou obras como O Corvo (1994), Alice (1995), Watchers (2018), Sentinel (2019), entre tantas outras. De todos estes trabalhos, certamente o que mais se destaca é a série O Corvo.

Depois do sucesso do primeiro álbum, a série teve, até ao momento, mais 4 novas entradas: O Corvo II - O Regresso (2003), O Corvo III - Laços de Família (2007), O Corvo IV - Inconsciência Tranquila (2020) e O Corvo V - Inimigos Íntimos (2021). Mas vamos por partes. Afinal quem é O Corvo?

O Corvo (1994)


O Corvo foi lançado em 1993 e marca, assim, a primeira obra a solo do artista português. Neste livro acompanhamos a história de um carteiro que reside em alfama e que descobrimos o seu passado e infância logo no primeiro capítulo do livro. Com ilustração a preto e branco, que nos ajuda a diferenciar visualmente o período da infância de Vicente com o resto da história, Luís Louro mostra-nos a trágica infância de Vicente.

O seu pai, polícia de profissão, é retratado como um bêbado que, após um dia de trabalho vai ao café e fica embriagado. Quando chega a casa, senta-se no sofá acompanhado de uma garrafa de vinho e de uma pistola enquanto assiste ao jogo das meias-finais do campeonato do mundo de 1976 onde Portugal enfrentaria a Inglaterra e que acabaria por perder. No momento do segundo golo dos ingleses, o pai de Vicente exalta-se e começa aos tiros pela casa e tragicamente acaba por assassinar a própria mulher. Atormentado pelo sentimento de culpa o homem acaba por se enforcar e Vicente deixa a cidade para viver na casa dos avós no campo, onde passa grande parte da sua infância.


Aqui são demonstrados mais alguns momentos chave da construção da personalidade do protagonista. Vicente torna-se fascinado por revistas de super-heróis e afasta-se dos outros miúdos da aldeia. Assim, este torna-se vítima de bullying e fecha-se cada vez mais o seu próprio mundo. Outro momento importante é quando é violado por várias raparigas mais velhas que pensavam que Vicente era “maricas”. Todos esses acontecimentos fazem com que estejamos perante um personagem problemático com vários traumas e com desdobramentos de personalidade.


Anos mais tarde volta para a cidade quando o seu avô morre. Aí torna-se carteiro, lê as suas bandas desenhadas e é acentuado o seu distanciamento com o mundo real. Quando o seu único elo de ligação à realidade, uma amável senhora que o tratava bem acaba por falecer, Vicente sente a necessidade de deixar emergir o seu subconsciente e transformar-se no Corvo. É na criação deste alter ego que o jovem consegue desprender-se da timidez de Vicente e aliado ao seu fascínio por super-heróis e banda desenhada começa a combater o crime.



De facto, com o passar dos anos Lisboa ficou tomada pela criminalidade e, então, o Corvo segue numa jornada na qual pretende acabar com os problemas que este acha estarem a assombrar a cidade. Para isso tem a companhia da sua fiel companheira Robim, a sua bicicleta. Juntos vagueiam na noite pelos telhados de Lisboa e vemos o desastrado Corvo nas suas aventuras que levam a ter situações bastante engraçadas, sejam estas causadas pela sua trapalhice ou pelas peculiaridades dos personagens que encontra. Deste modo, o duo magnífico irá fazer das suas sempre com a intenção de fazer o bem, mesmo que as suas ações não o reflitam.


O argumento é carregado humor negro e ácido com que Luís Louro consegue deixar os leitores desconfortáveis e ao mesmo tempo arrancar gargalhadas. É sem dúvida uma paródia ao género super-heróis e que foi bastante inovadora, principalmente para o panorama nacional. Todos estes elementos fazem de O Corvo um sucesso tremendo e que se reflete nas seis edições lançadas deste livro, mas apesar do argumento ser muito bem construído e divertido, é na arte que Luís Louro se destaca.


O seu traço é detalhado e expressivo e algo cartonesco e que utiliza muito bem os quadros grandes desta edição, fazendo com que este livro seja uma experiência visual bastante atrativa para os leitores. Além do visual característico de seu personagem, é Lisboa e principalmente os seus telhados que tem o destaque desta obra. Assim O Corvo pode resumir-se a um livro sólido que utiliza o espírito português para construir um anti-herói e que tem um grande vigor na sua arte e no seu humor.


O Corvo II - O Regresso (2003)


Em 2003 e em celebração pelos dez anos do lançamento do primeiro volume da série, Luís Louro regressou ao personagem com o livro O Corvo II - O Regresso. Apesar do longo período entre o lançamento dos livros, a trama continua pouco tempo depois do final do capítulo anterior. Assim, o Corvo sai do hospital e tem como primeira missão resgatar Robim que desapareceu no final do primeiro livro.


Neste novo capítulo é expandido o universo introduzido e apresentada em 1994, ora aproveitando personagens que já tinham aparecido no livro anterior, ora introduzindo novos. Neste contexto, a personagem Joana aparece como interesse amoroso de Vicente, no entanto os seus traumas, como o abuso sexual que foi vítima, fazem-no sentir reticente em relação ao avanço da mesmo . O desenvolvimento da trama é superior ao anterior e o encerramento desta é brutal e retrata de forma brilhante a psicologia do Corvo. Para além das referências à cultura pop, como livros de banda desenhada da Marvel, Senhor dos Anéis e até Jim del Mónaco, obra de Luís Louro, aparecem também referências nas paredes ao clube SL Benfica e à banda Ramp em que o personagem apareceu na capa do álbum Intersection.


No meio dessas referências há também uma brincadeira na qual o Corvo encontra “o homem que mordeu o cão”: Nuno Markl. Mas são as referências visuais dos heróis americanos que tem um maior destaque nesta publicação, seja numa pose parecida ao Homem-Aranha ou ao Spawn no topo dos telhados. A nudez que é uma das referências visuais introduzidas no capítulo anterior volta, bem com a representação do mundo da prostituição que geram cenas hilariantes e muito divertidas. Por todas estas razões, este é o meu álbum favorito de toda a série.

O Corvo III - Laços de Família (2007)


No volume O Corvo III - Laços de Família temos um volume diferente dos outros dois por duas razões. A primeira é o facto de Nuno Markl assumir o argumento do mesmo, ficando Luís Louro apenas na ilustração. A segunda é a escolha de apenas representar o Corvo e não vermos nenhuma interação de Vicente.

A introdução de Nuno Markl é muito interessante, uma vez que este traz a sua interpretação do personagem. A história gira à volta de um reality show de super-heróis e tendo em conta que este volume foi lançado em 2007, numa altura em que a televisão portuguesa já tinha apostado neste tipo de programas, tem toda a lógica este ser o tema abordado neste volume. Uma das características fundamentais da série é a crítica a temas sociais e, deste modo, o tema aqui abordado torna este álbum relevante até nos dias de hoje.


No entanto, tal como referi anteriormente, a escolha de apostar apenas no Corvo faz com que este volume não possua o outro lado dramático do personagem. Consequentemente isto leva a uma leitura mais leve, onde acompanhamos as aventuras e trapalhices do Corvo. Particularmente, a falta desse lado dramática leva-me a achar que o desenvolvimento desta história fica uns furos abaixo quando comparada com o desenvolvimento dos dois anteriores. Não obstante se coloca em causa a qualidade do álbum. Esta mudança de rumo é bem-vinda, até porque sinto que esta abordagem vem trazer um novo ar à série em vez de voltarmos a ter “mais do mesmo.” Com isto são apresentados novos personagens como “O Senhor do Mal”, a malvada, fantástica, soberba, linda, terrível “Viúva Negra” e “O Pombo” (que tinha aparecido no final do volume 2), numa clara auto referência ao argumentista deste álbum. Finalmente é também apresentada a verdadeira origem do “Combustão”, que Luís Louro viria a resgatar no quarto volume da série.


Esta ano o volume foi reeditado pela Ala dos Livros, algo que os leitores já pediam há bastante tempo. A edição original da Asa apenas teve uma edição e, desde então, tornou-se um livro bastante difícil de se encontrar. Assim, é de louvar a iniciativa da editora em permitir o acesso deste livro novamente aos leitores portugueses. Naturalmente, para aqueles que já leram os volumes 4 e 5 da série poderão estranhar a ilustração, uma vez que a técnica utilizada por Luís Louro é diferente e também porque o seu traço evoluiu. Mesmo estando em linha com o traço dos volumes anteriores, o trabalho gráfico é muito bom.


Um dos extras presentes neste álbum é a troca de correspondência via e-mail entre o argumentista e o ilustrador e nota-se que o processo de criação do mesmo não foi fácil, verificando-se um longo desenvolvimento do argumento. Este álbum apresenta também um prefácio assinado por Nuno Markl em que este descreve o processo de criação de uma banda desenhada.

Apesar de não ter tão bom quanto dos dois primeiros, este volume tem a sua importância por levar a série para um lado ainda mais cómico e o seu grande trunfo é a abordagem cómica e satírica de um tema que ainda hoje é relevante.

O Corvo IV - Inconsciência Tranquila (2020)


Após um hiato de 13 anos do personagem e também do próprio autor, que durante alguns anos desses anos se afastou da banda desenhada, voltamos acompanhar as histórias deste personagem tão querido da banda desenhada portuguesa. Neste quarto volume podemos perceber logo à partida que está mais em linha com o tom cómico abordado por Nuno Markl no terceiro volume do que como o tom dos dois primeiros. Assim os elementos mais dramáticos de Vicente apresentados em O Corvo e O Corvo II - O Regresso dão lugar à comicidade, diversão e asneiras provocadas pelo herói lisboeta. Mas engana-se quem pensa que isso afeta a qualidade deste álbum. Muito pelo contrário! É o próprio afastamento de Vicente, que não aparece neste livro,  que torna esta história numa autêntica aventura "inconscientemente tranquila.


Luís Louro mostra novamente o porquê de ser um dos melhores artistas de banda desenhada com o tom muito próprio da série cheio de humor negro, sexo, drogas e muita crítica social exposta através desse humor que o autor tão bem sabe usar. Quem conhece outros livros do autor percebe que este elemento está bem presente nos outros álbuns da série.
Nesta nova aventura o Corvo terá de enfrentar o vilão Fanã, que já tinha sido apresentado no segundo livro da série, e que se apresenta agora como Combustão. Para o travar está novamente o Corvo e a sua fiel companheira Robim. A história é desenvolvida ao longo de cinco capítulos, sempre com um ritmo muito bom e situações hilariantes que irão arrancar gargalhadas aos leitores mas sempre com audácia e o sentido provocador tão característico de Luís Louro. Se os álbuns anteriores funcionavam como uma crítica e até certo  uma ridicularização das histórias de banda desenhada, particularmente as de super-heróis, este não foge à regra. Aliás, vai mais além e temos até um momento de quebra da quarta parede quando  o vilão irrita-se com o narrador por não saber dizer o seu nome.


As homenagens ao Homem-Aranha estão presentes e juntam-se as de heróis como o Hulk, Capitão América e Super-Homem. O cenário é novamente de Lisboa, privilegiando os telhados mas temos direito a novos sítios nunca antes explorados. Destaque para o clube noturno "Convento", que é centro de operações de um novo criminoso e que conta com várias freiras sexualizadas e que irão causar problemas ao alter-ego de Vicente. Nessas passagens podemos ver a nudez tão presente na série, bem como nas várias cenas em que o Corvo tenta avisar o padre do seu bairro, interrompendo momentos de cariz sexual protagonizados pelo mesmo. Novamente a crítica à classe social religiosa que muitas vezes é associada a crimes sexuais. No momento em que o Corvo está no meio das freiras, talvez vejamos um dos maiores momentos de profundidade deste álbum, uma vez que este tem um trauma apresentado no 1º volume quando foi violado por várias raparigas.


Apesar de todos estes momentos de diversão protagonizados pelos personagens que encontra pelas ruas e telhados de Lisboa, o que está envolvido na maioria dos momentos mais leves é o vilão. Combustão é um vilão ignorado por todos, mesmo que tenha um visual bastante interessante. Esse visual bem como todas as ilustrações deste volume são um dos trunfos deste livro. Existe uma clara evolução no traço de Luís Louro que apresenta enquadramentos mais ousados e um trabalho de iluminação absolutamente soberbo. Não querendo desmerecer os fantásticos trabalhos realizados nos volumes anteriores, a arte final e principalmente as cores que foram feitas digitalmente são um espanto para os olhos dos leitores como podemos ver nas double splash pages do álbum.


Para melhorar tudo isto, a edição da Ala dos Livros tem um formato maior do que as edições anteriores, o que leva a arte de Louro a outro patamar. Sem dúvida o formato ideal para esse tipo de histórias. A encadernação do livro é boa, a capa dura é brilhante e o papel é muito bom como destaque para o carimbo branco já clássico nos livros da editora. É certo que o tom mais dramático é deixado de lado para uma aventura mais frenética, mas a arte compensa e vai de encontro à proposta do livro: uma história simples, engraçada e incrivelmente fantástica.


O Corvo V - Inimigos Íntimos (2021)


O mais recente volume da série O Corvo, que conta com o subtítulo Inimigos Íntimos, é de certa maneira "um regresso às origens". Verifica-se logo pela capa o regresso de Vicente que já não aparecia na série deste o segundo volume. E destaco já esta capa que é, sem sobra de dúvidas, a melhor capa de toda a série e que representa muito bem a essência da série.

O lado mais dramático do personagem é novamente abordado e Louro consegue no seu argumento balancear muito bem o lado dramático de Vicente com o humor e a crítica que se verifica nas interações d'O Corvo. Assim, o artista divide de forma inteligente o argumento em duas narrativas: uma em que acompanhamos as peripécias do anti-herói e outra em que acompanhamos Vicente numa consulta com a sua psicóloga. A primeira parte é parecida a outras aventuras do Corvo e onde Luís Louro potencializa os seus dotes de ilustração, no entanto o que mais me agradou foi a narrativa do Vicente que traz algo de novo para a série enquanto que fez revelações importantes do passado do personagem.



Assim, os leitores voltam à infância de Vicente e Luís Louro volta a mostrar alguns do acontecimentos retratados no primeiro volume numa outra perspetiva, enquanto expande esse passado com novos acontecimentos nunca antes vistos, como por exemplo a origem da sua fiel companheira Robim. Este flashback é apresentado no terceiro capítulo deste álbum. Isto leva-me a referir que os últimos dois volumes da série apresentam 5 capítulos em contrapartida aos 3 utilizados na trilogia original, o que permite um melhor desenvolvimento do argumento.



O final é chocante com um duplo plot twist que a mim me agradou bastante. Este volume está também repleto de várias referências e que ajudam a expandir o Louroverso.

Finalmente apresento aqui o meu top 5 histórias d'O Corvo:

1. O Corvo II - O Regresso (2003)
2. O Corvo (1994)
3. O Corvo V - Inimigos Íntimos (2021)
4. O Corvo IV - Inconsciência Tranquila (2020)
5. O Corvo III - Laços de Família (2007)

Luís Louro já desvendou nas suas redes sociais que finalizou o sétimo volume da série apesar do sexto volume ainda não ter sido publicado

O que acham da série O Corvo?
Já leram?

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