Publicado recentemente pela editora A Seita como parte da sua coleção Nona Literatura, Frankenstein de Mary Shelley com argumento e ilustrações de Georges Bess é um dos melhores livros que li este ano. O ilustrador de séries como O Lama Branco e Juan Solo e responsável pela adaptação de Drácula de Bram Stoker igualmente editada pel'A Seita, apresenta aos leitores a sua versão do clássico de ficção científica.
Apesar da história estar enraizada no imaginário popular ocidental e de ter várias adaptações para outras mídias, nunca li o romance original da autoria de Mary Shelley, pelo que não poderei comparar a fidelidade da adaptação de Bess ao original. Mesmo assim acho que as comparações entre obra original e adaptação devem-se focar mais nas mensagens e ideias transmitidas do que propriamente na forma como esta é feita. Deste modo, acho que as adaptações devem ser fieis às mensagens e tópicos da obra original mas julgadas por aquilo que são e não por aquilo que poderiam ou deveriam ser. Sendo assim, aquilo que o artista francês apresenta é uma excelente história, muito bem construída e com uma mensagem forte e concordante com a da obra original.
O livro tem 200 páginas, divididas por 17 capítulos, na qual a história é desenvolvida. Desde já gostei bastante da divisão da história em pequenos capítulos. Ao longo da narrativa o narrador vai alterando consoante o personagem em foco. Assim, a narrativa começa com Walter, o capitão de navio que encontra Victor Frankenstein perdido à deriva num enorme bloco de gelo. O capitão resgata então o homem que muito doente conta a história da sua vida e da sua maior criação. Deste modo, a narrativa faz um salto temporal para o passado em que acompanhamos a juventude de Victor e a sua jornada até à criação do monstro de Frankenstein. Aqui Bess habilmente muda o narrador para o personagem de Victor o que permite ao leitor perceber quem este é e quais as suas motivações. Além disso, esta mudança no narrador permite que o autor consiga construir o personagem de Frankenstein. Durante 3 capítulos acompanhamos então a jornada de pesquisa científica de Victor bem como percebemos até que ponto a ambição deste homem o faz cometer atrocidades. As sequências de eventos são dinâmicas e bem construídas até ao momento em que o monstro e protagonista da história é apresentado.
A partir deste momento quem assume a narração por grande parte da obra é a própria criação de Victor. À semelhança daquilo que Georges fez com o cientista suíço, neste momento a narração passa para o monstro e o leitor vai lendo o relato em primeira pessoa das atrocidades vividas e posteriormente cometidas pelo monstro. Com páginas suficientes e sem nunca sentir algum tipo de pressa no desenvolvimento da narrativa, acompanhamos o monstro nos seus primeiros anos de vida e os momentos que marcaram estes. Assim, o monstro enfrenta o medo e consequente fúria da humanidade perante aquilo que não entende, os instintos dos animais durante a sua jornada pela floresta, bem como etapas normais do desenvolvimento de um ser racional como ler, falar e refletir. Estes momentos marcam a tragédia do monstro que se mostra inicialmente um ser movido por ideais nobres mas que perante o ódio sofrido pelos humanos se vai transformando num verdadeiro monstro. Destaco novamente a narração em primeira pessoa do monstro que tem um impacto ainda maior no leitor. Ao longo da leitura senti pena, raiva e acima de tudo um sentimento de injustiça por ver que um ser movido por boas intenções é vítima de um tratamento execrável apenas pela sua aparência.
Mas é a própria racionalidade do monstro que o vai levar à sua queda moral. Naturalmente durante a sua descoberta do mundo, este começa a refletir sobre a sua origem até que parte em busca do seu criador. E esta é, sem dúvida a parte que mais me entusiasmou durante a história. A sequência de eventos é trágica e chocante e conduz a trama a um final extremamente triste mas com uma mensagem absolutamente poderosa. Não é à toa que com mais de 200 anos de existência esta história de mantenha relevante na nossa cultura.
Se o argumento já é bastante conhecido, talvez o ponto mais interessante das adaptações em banda desenhada seja mesmo as ilustrações. Aqui temos um livro a preto e branco que é um deleite para os olhos. Georges Bess apresenta uma ilustração extremamente detalhada e expressiva. Apesar de serem obras diferentes, consigo ver algumas semelhanças no nível de expressividade presente nesta obra e no livro Monstros de Barry Windsor-Smith. Bess usa maioritariamente vinhetas grandes, num estilo quase cinematográfico e apresenta uma variedade de layouts nas suas ilustrações. Aqui os leitores nunca se vão aborrecer ao virar de cada página. O artista francês também faz um excelente uso do preto e do branco nos seus cenários. Por exemplo, para demonstrar o isolamento do monstro, os leitores irão encontrar muitas vinhetas em que temos o monstro e um fundo predominantemente branco. Por outro lado, em muitos casos os cenários são muito bem representados e com um nível de detalhe incrível. Mas o grande destaque é a expressividade dos personagens, sendo que o artista consegue uma relação simbiótica entre o texto e as ilustrações de modo a elevar o impacto emocional do argumento.
A edição d’A Seita é em capa dura, com papel mate que combina com o preto e branco das ilustrações. Este volume inclui ainda as pranchas adicionais e ilustrações da edição de luxo francesa. Tal como em outras obras a editora lançou uma tiragem especial com uma capa alternativa prateada, exclusiva da Wook.
Poderão ver mais imagens deste álbum aqui: https://www.instagram.com/p/Cul57xFs15E/
Com um argumento muito bem adaptado e ilustrações belíssimas, Georges Bess reapresenta o clássico romance de Mary Shelley numa adaptação para a nona arte que os leitores portugueses poderão apreciar graças à edição d'A Seita.
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