quarta-feira, 5 de julho de 2023

Análise - "As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy" com argumento de Filipe Melo e ilustrações de Juan Cavia

Treze anos após a publicação do primeiro volume da série Dog Mendonça e Pizzaboy, a editora Companhia das Letras (a nova casa para o catálogo da dupla Filipe Melo e Juan Cavia) reuniu todos os volumes da série num volume integral ao estilo omnibus. Denominado como As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy, este volume reúne os livros As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy (fevereiro de 2010), As Extraordinárias Aventuras de DogMendonça e Pizzaboy II: Apocalipse (outubro de 2011), As Fantásticas Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III: Requiem (novembro de 2013) e Os Contos Inéditos de Dog Mendonça e Pizzaboy (abril de 2016), originalmente publicados no formato capa mole pela editora Tinta-da-China. Este volume conta ainda com um conto ilustrado inédito de 60 páginas, criado especialmente para este volume, e que se trata de um spin-off com a Madame Chen como protagonista. Para engrandecer ainda mais este volume, é incluída uma secção de extras com textos de João Miguel Lameiras relativos a cada um dos volumes.


Desde já quero realçar a ideia de publicar este livro dado que as edições originais da editora Tinta-da-China já se encontram esgotadas há bastante tempo. Além disso, com este lançamento é finalmente encerrado o processo de migração da obra da dupla Filipe Melo e Juan Cavia para a editora Companhia das Letras.


Curiosamente a série Dog Mendonça e Pizzaboy era a única obra da dupla que ainda não tinha lido. Deste modo, consegui finalmente ler a série de uma ponta à outra. Naturalmente, e tendo em conta que não "entrei na série de cabeça", já estava com o mindset de que o tom e abordagem dos autores nesta obra quando comparado ao das obras posteriores é muito mais leve, aventuresco e humorístico. Além disso, outro ponto importante a realçar é a própria evolução dos autores ao longo dos anos. Como seria de esperar, e como afirmado pelo Filipe em vários eventos de promoção deste álbum, existem elementos que os próprios autores se "envergonham". Mas isso é claramente a prova de que o argumentista e o ilustrador evoluíram na sua produção criativa ao longo dos anos. Mesmo assim, tenho a dizer que As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy acertam exatamente na sua proposta: serem histórias divertidas de aventura que homenageiam o cinema fantástico dos anos 80.


As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy

É neste contexto que surge o álbum As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy. No entanto, a história começa anos antes, dado que a ideia original surgiu de um guião para cinema escrito por Filipe Melo que contaria com Nicolau Breyner como protagonista. Esse filme nunca passou da fase de pré-produção e transformou-se, então, numa história de banda desenhada. Neste primeiro volume, somos apresentados aos personagens principais da série. Eurico Catatau, também conhecido como Pizzaboy, é um entregador de pizzas comum que, por acaso, se torna aprendiz do detetive paranormal Dog Mendonça. Dog, por sua vez, é um homem misterioso e especializado em investigar casos sobrenaturais. Juntamente com o seu assistente Pazuul, um demónio disfarçado de menina, formam uma equipa improvável. Quando uma série de misteriosos desaparecimentos de crianças começa a assombrar a cidade de Lisboa, Dog, Pizzaboy e Pazuul embarcam em uma investigação cheia de perigos, monstros e criaturas paranormais. Ao longo da trama, Eurico descobre que existe uma Lisboa subterrânea e secreta que é povoada por monstros e demónios paranormais.


Este primeiro volume pauta o tom cómico e de ação que caracteriza toda a série. Nota-se claramente todas as inspirações de Filipe Melo, desde bandas desenhadas como Hellboy, Dylan Dog e Spider-Man, até filmes como Back to the Future, Star Wars e Indiana Jones. Deste modo, os leitores que já tiveram contacto com alguma destas obras irão, certamente, apreciar o trabalho da dupla neste volume. O argumento cumpre a estrutura narrativa e apresenta um início, meio e fim bem desenvolvidos. É certo que o desenvolvimento dos personagens não é profundo, no entanto a aventura compensa com boas cenas de ação e diálogos e situações hilariantes. Além disso, o grande trunfo de Filipe é a construção de personagens carismáticos e de um universo interessante. Para juntar tudo isto surge Juan Cavia com um tipo de ilustração que se inspira bastante nos comics americanos. As ilustrações são boas, sendo umas melhores do que outras, e Cavia consegue brilhar com as double splash pages. Algo que não apreciei tanto neste primeiro volume é a planificação das vinhetas, que é algo que melhora bastante nos outros volumes da série. As cores são de Santiago Villa que faz escolhas acertadas que ajudam a dar a atmosfera perfeita aos ambientes em que a história de desenrola. Por todas estas razões este primeiro volume foi um sucesso junto do público aquando do seu lançamento e, apesar de não ser perfeito, foi sem dúvida uma lufada de ar fresco para a banda desenhada nacional.


Os Contos Inéditos de Dog Mendonça e Pizzaboy

Contrariamente ao que os leitores poderiam pensar, nesta versão integral foram incluídos Os Contos Inéditos de Dog Mendonça e Pizzaboy entre o primeiro e o segundo volume. Particularmente gostaria de ver os álbuns ordenados pela sua ordem de lançamento, não obstante a experiência de leitura não é afetada por esta decisão editorial.


Este volume reúne quatro histórias curtas, publicadas originalmente na revista Dark Horse Presents, e conta algumas pequenas aventuras de Dog Mendonça, como a sua origem. O destaque aqui é, sem dúvida, a origem de Dog Mendonça que se apresenta como uma história mais profunda e trágica. Naturalmente, verifica-se o amadurecimento de Filipe como contador de histórias e criador de personagens. Gostei bastante destes contos, uma vez que vêm acrescentar factos interessantes a este universo. Além disso, no que diz respeito à construção da narrativa, Filipe recorre à quebra da quarta parede o que torna estas histórias as mais hilariantes e cómicas de toda a série. As ilustrações de Cavia são bem mais consistentes do que no primeiro volume, o que também demonstra a evolução do ilustrador. Algo que realço neste volume é a inclusão de ilustrações da autoria dos artistas portugueses Joana Afonso, Filipe Andrade, Jorge Coelho e Ricardo Cabral a separar os quatro contos. De uma forma geral, acho que estes contos são um complemento essencial à série.


As Extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy II: Apocalipse

Segue-se o segundo volume da série publicado originalmente em 2011. A história do álbum As Extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy II: Apocalipse começa com uma praga de gafanhotos que anuncia a chegada do Apocalipse. Assim, depois de serem contactados por um padre, os nossos heróis partem rumo a Fátima para encontrarem a Nossa Senhora. Com isto o escopo da história é bem mais grandioso do que no álbum anterior. Mais uma vez não irei dar mais informações pois acredito que os leitores devem ler as histórias por si.



Ao contrário dos volumes anteriores e apesar deste volume manter os elementos presentes nos mesmos, acho que a história é a mais fraca de todas. Com isto quero dizer que continuamos a ter um livro cheio de cenas de ação e diálogos bem dispostos, no entanto acho que o argumento não traz uma história tão inspirada como o anterior. Além disso, acho que este é a história com os elementos mais fantasiosos de toda a saga. De uma forma geral, a fórmula do volume anterior foi utilizada mas sem obter o mesmo sucesso esperado. Ainda assim é de destacar a coragem do argumentista em abordar questões religiosas e conceder um lado crítico relativamente a estas. Principalmente num país que tem uma ligação profunda ao Cristianismo.



Mesmo assim, apesar do argumento deste volume ser mais fraco, acho que as ilustrações de Juan Cavia caminham na direção oposta. Aqui considero que a planificação das vinhetas é melhor construída e os desenhos a lápis são também mais consistentes do que no primeiro volume. As cores de Villa aplicadas diretamente nos desenhos de Cavia também ajudam a elevar a arte deste volume.



De um modo geral, a leitura deste volume é leve, boa e entrega uma boa dose de entretenimento puro, no entanto a qualidade fica abaixo do volume anterior.


As Fantásticas Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III: Requiem

Em 2013 chegou às bancas As Fantásticas Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III: Requiem, o volume que encerra a série. Este terceiro volume veio contrariar a regra de que as terceiras partes das trilogias são sempre as piores. Diria até que de todos, este é o melhor volume da série.



A história apresenta um salto temporal grande e vemos já Eurico adulto com a sua família. Por sua vez, Dog está com problemas com o fisco e vai viver para a casa do seu amigo Pizzaboy. Para levar a história para a frente, Filipe Melo traz um velho arqui-inimigo de Dog que tinha aparecido no final do volume 2 num cliffhanger. A história mantém o tom épico introduzido no segundo volume e Filipe habilmente traz um lado mais humano para os seus personagens. Eurico, pela questão familiar. e Dog, principalmente pelas revelações do passado aqui descritas, são personagens cuja profundidade humana é muito mais desenvolvida do que nos volumes anteriores. O lado crítico e satírico de Melo está bem presente sendo que o visado desta vez é o governo intervencionado pela Troika. O argumento é muito bem construído e repleto de momentos inesquecíveis. Os personagens secundários também são interessantes com destaque para o vilão deste álbum. O argumento ainda consegue trazer novas explicações como por exemplo o porquê de Dog usar um penso curativo no sobrolho. A explicação é plausível e é apresentada num flashback que é determinante para a história deste volume. Aqui temos Filipe Melo no seu melhor no que diz respeito aos argumentos da série, o que leva a uma conclusão deste universo que é muito boa e faz jus à trajetória dos personagens.


A arte de Juan Cavia melhora ainda mais neste volume, sendo aquele que mais aprecio em toda a série. Não há muito mais que possa dizer relativamente ao trabalho gráfico. Destaco apenas a sequência inicial deste volume em que Dog Mendonça e Pizzaboy estão a assistir à adaptação cinematográfica das suas aventuras em que Cavia, para retratar as cenas do filme, recorreu ao seu professor de desenho Carlos Pedrazzini para desenhar e passar tinta nos seus desenhos a preto e branco numa homenagem ao artista Domingo Mandrafina. O resultado é simplesmente belo.

O terceiro volume de Dog Mendonça é claramente o melhor de toda a série, em que Filipe Melo e Juan Cavia estão no seu melhor para criar a conclusão de uma série que os catapultou como uma das melhores duplas da banda desenhada nacional.

As Fabulosas Aventuras de Madame Chen

Finalmente temos o inédito conto ilustrado denominado As Fabulosas Aventuras de Madame Chen. E sem mais rodeios só tenho a dizer: que excelente história! Este conto conta com mais de 60 páginas e retrata a história de origem da personagem Madame Chen antes de vir para Lisboa. Aqui Filipe Melo constrói uma história deliciosa, muito bem estruturada e, acima de tudo, profunda. Esta é talvez a história mais humana de todo este universo. Diria até que este trabalho encontra-se mais em linha com o que os autores criaram com Balada para Sophie do que propriamente com o universo Dog Mendonça e Pizzaboy. Destaque para os poemas escritos por Yvette Centeno que contribuem para a beleza desta história.


A acompanhar o belo texto de Filipe temos as ilustrações estonteantes de Juan Cavia. Aqui o ilustrador utiliza uma técnica de pintura ao estilo tradicional chinês e que conferem até um lado mais dramático e em linha com o tom da história de Melo. É, sem dúvida, o casamento perfeito entre texto e ilustração. A prova viva da forma como as mentes destes dois artistas pensam como uma só.



Falando agora da edição, esta conta com um prefácio de Filipe Melo que nos apresenta à série. No início de cada um dos volumes são também incluídos os prefácio presentes nas edições originais dos livros que são da autoria das lendas do cinema John Landis, Lloyd Kaufman, George A. Romero e Tobe Hooper. Este volume conta com acabamento em capa dura e o título tem relevo prateado. O papel é de boa gramagem, sendo brilhante nas histórias de banda desenhada e nos extras e mate no conto ilustrado. Esta escolha é acertada dado que condiz perfeitamente com as ilustrações que Juan Cavia realizou para este conto. O livro conta ainda com uma fita preta marcadora de página. Os extras, tal como referi, são textos de João Miguel Lameiras relativamente a cada uma das cinco partes do livro, acompanhados de fotos de bastidores, esboços, estudos de personagens e páginas de guiões. Realço que o tamanho das páginas é maior relativamente às edições originais. Sem dúvida que é um excelente livro a nível técnico e que se ajusta à relação qualidade/preço.

Poderão ver mais imagens deste álbum aqui: https://www.instagram.com/p/CuUomRuMRT5/


Para finalizar, fico extremamente contente por ver todos estes volumes novamente disponíveis para os leitores portugueses. Sem dúvida que esta série é um marco na banda desenhada nacional e mostrou que é possível fazer banda desenhada comercial e apresentar um elevado nível de qualidade. Além disso, este lançamento é igualmente importante uma vez que mostra que é possível lançar álbuns como este, com uma qualidade gráfica enorme e com um elevado número de páginas, e mesmo assim ser viável comercialmente. Finalizo a análise com um conselho muito breve: vão comprar este álbum porque não se irão arrepender!

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